OLHANDO PARA QUEM EU FUI

É inverosímil pensar que hoje sou a mesma pessoa que sempre fui. Inclusivamente, digo com orgulho que sou bem diferente. (Até porque desconfio sempre de seres estagnados e que se agarram à convicção de que os outros têm de os aceitar porque sempre foram assim.) Eu sei que hoje não sou (nem) a mesma de há 1 ano atrás!
Os meus avós maternos, a minha mãe e eu.

A primeira imagem que tenho de mim mesma é a de uma criança vivaça e alegre, sempre à procura de algo para se entreter e sempre com algo para dizer. Não consigo visualizar-me para além das imagens das fotografias da época, mas tenho imensas cenas felizes gravadas na minha mente, que consigo recuperar e visualizar de novo, como se lá estivesse. 
É impossível lembrar-me de mim mesma sem me associar à escola. Afinal, desde os 6 anos que não a largo e, primeiro como aluna e depois como professora, a verdade é que passei na escola grande parte do meu tempo de vida.
Antes de andar na escola, já tinha imensa vontade de aprender a ler, por isso, à conta de tantos livros que a minha mãe me lia e de tudo o que houvesse de escrita lá por casa, aprendi a ler sozinha com facilidade. Tanto era uma miúda de bonecas como de livros, pois brincar ao faz-de-conta sempre foi o meu entretenimento preferido. Sempre na companhia da minha irmã, com quem brigava (porque tinha de me obedecer por ser a mais velha), mas com quem também brincava imenso. 



Na escola primária e preparatória era uma boa aluna. Muito despachada e trabalhadora, perfeitinha a fazer os trabalhos, com bons resultados e amiga de ajudar os colegas. Falava pelos cotovelos. (É uma das características que está tatuada no meu ADN e que também passei de herança aos meus filhos.) 
Um dia, há uns 10 anos atrás, em conversa com uma ex-colega dessa altura, recordei uma faceta minha que estava esquecida. Dizia-me ela que eu "era mazinha". Desconfiei. Depois percebi. Verdade, era um pouquinho "conflituosa". Digamos que gostava de ser "chefe" e não tinha muita paciência para quem tomava o partido contrário. Isto, aliado à dificuldade (não tatuada, mas pintada) de resolver conflitos de forma assertiva, fazia alguma fricção nas relações com os colegas. À parte disso, era muito amiga dos meus amigos e estava sempre disposta a ajudar.

A Mónica, eu e a Cláudia, na escola primária.

Também me lembro de ser "namoradeira", característica que me acompanhou sempre e da qual não sei bem o que pensar. Em relação a isto, lembro-me de, até ao 10.º ano, me enamorar sempre pelos rapazes mais populares da escola. Normalmente, não eram conquistados por mim, mas mantinham o meu coração ocupado. 
Pelo contrário, lembro-me bem dos que eram loucos por mim. Sempre com um perfil muito semelhante, oscilando as suas dificuldades entre o aspeto físico e os resultados escolares. Eram os "coitadinhos" ou "os mais gozados na turma". Saía em sua defesa e ajudava, por isso ficavam apaixonados.

Em casa, era uma menina crescida. Ajudava a minha mãe nas arrumações, a tratar do meu irmão e nas compras. Era desenrascada e ativa, como uma mini-mulher. Gostava do meu papel de irmã mais velha e de "tomar conta" dos meus irmãos e, como é claro, a minha palavra era sempre a última e a mais valiosa. Era meiga e protetora, mas também um pouco resmungona e refilona. 

Eu e o meu irmão Rui


Quando fui estudar para Setúbal, no 8.º ano, afastei-me das pessoas de Palmela. Não foi atitude propositada, mas acabei por me envolver tanto na adaptação a uma "mundo novo" que deixei para trás a maioria das amizades que tinha. Também nunca fui de muitas amizades, de grandes grupos. É uma das características com que tenho mais dificuldades em lidar e daquelas que tenho procurado ultrapassar, mas sem muitos resultados. Adoro conhecer muita gente, apego-me com muita facilidade e afinco a quem se mantém próximo, mas não faço amizades duradouras com muita gente. Tenho pena disto e sei que é algo meu, mas ainda não ultrapassei.

Em Setúbal, fui adolescente de verdade. Lembro-me das mudanças de humor, das respostas tortas em casa, da necessidade de autonomia misturada com uma indecisão em relação às responsabilidades, de ser defensora da justiça e da igualdade, de ter ideias fixas e de não me deixar levar facilmente pela opinião dos outros. 
Lembro-me de rir muito e de gostar de sair. Adorava conversar e muitas vezes não dei pelas horas a passar. Também adorava dançar e sair, ainda que as "noitadas" tenham começado apenas mais para o final do secundário. Era uma jovem divertida e desinibida que queria muito ser alguém na vida e ter a sua independência.
Estudava muito, para ter boas notas. Dormia pouco. Queria ser motivo de orgulho para a família e, para o conseguir, tinha em mente uma vida delineada: curso superior, carreira com estabilidade financeira, casamento para a vida, filhos.... Por aí. Era o que queria e procurava não me afastar disso. 
Não tinha notas brilhantes, mas trabalhava muito e a média não era nada má. Cansei-me muito. Esgotei-me. Murchei por dentro. É assim que sinto que estava quando terminei o secundário. Estava doente e deixei que esse estado me alterasse a muitos níveis.


Fui uma jovem adulta mais calma e compenetrada. Entrei para o curso que quis, relativamente perto de casa. Isto permitia-me a segurança de uma rotina que já interiorizara e da família por perto. Lembro-me de ser sociável, simpática, comunicativa, afável. Lia muito e gostava de estar no meu canto ou rodeada das pessoas mais próximas. Fiz amizades que se tornaram também pilares importantes. Gostava ainda de ser líder e era uma aluna organizada e participativa.

No primeiro dia de trabalho, em 1999. Tinha 21 anos.


Tornei-me uma adulta responsável, resiliente, mais séria (apesar de risonha), mas insegura e com falta de autoestima. Acho curioso recordar que foi mais ou menos por volta dos 22/23 anos que descobri a minha paixão por livros de autoajuda e sei que, já nessa altura, queria muito aprender a ser uma pessoa mais confiante e segura de si mesma.

Quando olho para a pessoa que era, encontro muitas diferenças em relação à que hoje sou. Não era melhor nem pior. Era feliz com o que tinha e não ambicionava mais nada. Afinal, consegui atingir o tal plano que para mim estabelecera e que correspondia ao "correto" para alguém da minha idade.
No entanto, faltava qualquer coisa e só quando fui mãe me senti verdadeiramente completa.

Com a minha Matilde, no 2.º dia de vida. Tinha 27 anos.

Dos 25 aos 35 anos, só tenho duas visões da minha pessoa: mãe e professora. Não sei bem como era enquanto mulher, pois eliminei-me (quase) por completo. Foquei-me na educação dos meus filhos e em proporcionar-lhe uma infância feliz e rica em vivências e aprendizagens. Dediquei-lhes todo o tempo que podia e fiz de tudo para ser a melhor mãe do mundo. Errei em muitas coisas, mas dei o meu melhor e coloquei-os sempre em primeiro lugar. 
Também foi o momento de ascensão da minha carreira profissional. Não sei bem se será o melhor termo, mas acho que foram os anos em que mais me preocupei em ser a melhor professora do mundo.
Trabalhei muito durante estes anos. Para além do meu horário, rentabilizava todo o tempo em que eles estavam na escola e depois de estarem a dormir.
Voltei a dormir pouco, mas tinha um dia muito bem preenchido e chegava à cama com a sensação de dever cumprido. Casa impecável, filhos educados e felizes, profissional "reconhecida" na comunidade. Muita coisa ficou para trás, para além das horas de sono por compensar. Sentia-me bem nos meus papéis, mas insegura enquanto pessoa. Ou melhor, nula.

Eu e os meus filhotes (2010)

No dia em que fiz 35 anos tive uma crise muito grande, porque achei que estava a meio da vida e comecei a olhar para o presente. (Não sei porque raio pensei que morreria aos 70!)
Olhei à volta e senti que "a missão estava cumprida". Olhei para dentro e não vi nada. 
Nem hoje sei dizer bem que pessoa era eu nessa altura. Quem era para além de todos os papéis que tinha e dos desafios que enfrentava diariamente? Quem queria ser daí para a frente?
Foi um choque muito grande e uma altura muito difícil da minha vida, de grande revolta dentro da cabeça, de muitas questões, de desencontros, de perdas, de medos, de inseguranças. Tentava manter-me ocupada para não me encontrar e quando embatia de frente com algo com que não sabia lidar, batia no fundo e explodia.
Foi um processo. Foi um renascer que teve de acontecer.

E têm sido 7 anos de encontros, de batidas, de aventuras, de descobertas, de investimento em mim mesma, de desenvolvimento do ser que vive cá dentro e que se tem encontrado aos poucos... mês a mês, ano a ano. Sem largar os meus papéis, sem lhes dar menos importância, mas alargando-os a um pedaço de mim, fugindo do que "esperam" que faça e que seja, procurando maior autenticidade e menos automatismo, admitindo e perdoando as falhas e olhando em frente. Respeitando quem tenho descoberto que sou.


Este texto foi escrito em resposta ao Desafio 1 do DESAFIO 5 DIAS (RE)CONHECE-TE, 
do Be Inspired by Rute Batista. Inscrevam-se AQUI.

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